Por Palmira Simões Violência sobre crianças: as notícias veiculadas pela Imprensa que nos chegam quase todos os dias refletem uma realidade assustadora não só pela sua frequência mas porque acontece na esmagadora maioria dos casos ao nível da família. O pai e a mãe que em teoria representam figuras protetoras transformam-se na ameaça. Demasiadas vezes mortal. O ambiente mais próximo (espaço doméstico), ou seja, o microssistema (família) não funciona para estas crianças vítimas de maus-tratos como um espaço seguro. Porquê? Perguntamos tantas vezes num misto de incredulidade, horror e emoção. Quando aprofundamos a leitura das notícias constatamos que por detrás estão com frequência quadros depressivos, alterações de personalidade e psíquicas momentâneas provocadas por diversos fatores: pessoais, familiares, profissionais, económicos, aditivos (drogas e alcoolismo)… Nada justifica, pensamos ainda. Mas com a mente humana o nada nunca é assim tão linear. O desemprego, a crise e as dificuldades económicas são fatores de risco a considerar, com efeitos negativos na criança, para além de que complicam a interação com novos ambientes proximais (mesossistema e exossistema) supostamente protetores, ou mesmo fora deles, incluindo a ajuda da comunidade/sociedade (macrossistema). Muitas vezes as famílias até estão referenciadas, no entanto, esse facto nem sempre evita a tragédia. Isto é, as instituições existem mas não funcionam a 100 por cento, geralmente por falta de verbas e de pessoal. O que nos remete de novo para a questão da “crise”, endémica em Portugal, que trava os possíveis apoios das estruturas sociais. As notícias passam e a sociedade, incapaz de dar uma resposta cabal, parece ignorar. A questão é que sem estes apoios, a criança fica ainda mais exposta, uma vez que os mesmos funcionam como fatores protetores (que contrabalançam os de risco e podem desencadear processos de resiliência, nos casos em que isso é possível). Para Ann Masten e Norman Garmezy, especialistas em resiliência, as redes de apoio social, com recursos individuais e institucionais, que encorajem e reforcem a pessoa a lidar com as circunstâncias da vida, são consideradas fundamentais para o desenvolvimento infantil, a par de outras defesas. A sua ausência é vista como um evento negativo, uma vez que as redes facilitam o estabelecimento de novos vínculos e são importantes fontes de informação. No seu livro Maus-tratos à Criança, Azevedo e Maia (2006) também sublinham o empobrecimento das famílias, agravado pela crise, como um fator de risco na ocorrência dos maus-tratos infantis, remetendo este facto para um problema de organização social da comunidade, ou seja, do macrossistema, podendo assim constatarmos ainda a influência deste meio no ambiente proximal da criança, no seu microssistema. O pedopsiquiatra chileno Jorge Barudy afirma mesmo que a organização das nossas sociedades gera desigualdades sociais, discriminação e exclusão social, o que favorece os maus-tratos infantis. Este autor acrescenta que a estas situações de carência socioeconómica em que as famílias se encontram (desemprego, precaridade, necessidade de casa, alimentação, saúde) se alia o sentimento de incompetência e incapacidade para resolução dos problemas e conflitos da vida quotidiana, já para não falar do stress que a mesma provoca, fator que tem vindo a ser cada vez mais associado ao abuso infantil. No entanto, e embora a crise e as más condições socioeconómicas sejam na realidade potenciadoras de situações de risco de maus-tratos para crianças e jovens, os especialistas chamam a atenção que a pobreza, descontextualizada, não pode ser considerada fator de risco a priori, embora dificulte em grande medida o desenrolar de processos de resiliência e de superação das condições de vulnerabilidade. Resumindo, os maus-tratos infantis e juvenis têm causas e modos de atuação para os enfrentar diversos, devendo por isso ser investigados sob uma perspetiva global e abrangente, tal como a análise baseada na articulação entre contextos, pessoa, processo e tempo permite. Modelo bioecológico do desenvolvimento humano O modelo preconizado por Urie Bronfenbrenner, especialista em desenvolvimento humano, estabelece que a pessoa é influenciada ao longo da vida por diferentes ambientes, contextos diversos (familiares, escolares, institucionais, sociais e comunitárias…), sendo que os mais próximos (microssistema) interagem progressivamente entre si (mesossistema) — e com os mais distantes (exossistema e macrossistema) — através dos objetos e símbolos do ambiente imediato por processo recíproco com a pessoa, e são considerados pelo autor os principais motores de desenvolvimento. Bronfenbrenner, em conjunto com Pamela Morris, teorizaram, em 1998, que as interações dentro do microssistema ocorrem tendo em conta os aspetos físicos, sociais e simbólicos do ambiente. Estão diretamente ligados às características do indivíduo, já que estas influenciam a forma, a força, o conteúdo e a direção dos processos proximais e são resultado da interação conjunta de todos os elementos: contexto, processo, pessoa e tempo. Por sua vez, o tempo permite examinar as mudanças ocorridas ao longo do ciclo de vida, em três níveis: microtempo (aspeto proximal), mesotempo (intervalos de semanas ou meses), macrotempo (nível mais alargado que abrange todo o ciclo de vida). Bronfenbrenner considera ainda a existência de interações condição fundamental para o bem-estar psicológico saudável das pessoas, principalmente se forem marcadas por sentimentos afetivos positivos, reciprocidade e equilíbrio de poder. Ou seja, é a qualidade das relações que torna os contextos de risco ou de proteção. Assim, esta abordagem defendida por este autor ajuda a que o desenvolvimento humano seja entendido de forma contextualizada e tendo em conta todas as interações daqueles quatro elementos o que, para os especialistas Houston, McLoyd e Jessor pode levar a evitar os equívocos frequentemente cometidos de entender o desenvolvimento de uma população, principalmente no caso de populações de risco, a que muitas crianças pertencem. Segundo as psicólogas Michele Poletto e Silvia Koller, as características dos contextos em que crianças e jovens se movem direta ou indiretamente são essenciais na hora de analisar o seu desenvolvimento e nível de risco. Por fim, e de acordo com Alessandra Cecconello, a análise ecológica revela-se ainda necessária no processo da resiliência, uma vez que ajuda a investigar a maneira como as pessoas percebem e enfrentam adversidades decorrentes dos processos proximais, bem como a influência do contexto e do tempo em que vivem. No caso de uma criança que foi violentada fisicamente, a maneira como ela lidará com esta situação dependerá do contexto no qual essa violência aconteceu, dos ambientes que frequenta, da sua rede de apoio, do seu momento de desenvolvimento, e das suas experiências, processos psicológicos e características individuais. Para saber mais:
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