O conto tradicional, mesmo nas suas formas mais modernas, tem um forte papel na formação © Valeriy Lebedev - Fotolia.com Mas como se relacionam estes contos com o inconsciente infantil e com o desenvolvimento psicológico da criança? O psicólogo norte-americano Bruno Bettelheim explanou a sua perspetiva no livro "Psicanálise dos Contos de Fadas", editado em Portugal pela Bertrand, de que lhe trazemos aqui este excerto. Os contos de fadas e o dilema existencial Em ordem a dominar os problemas psicológicos do crescimento (ultrapassagem das feridas narcísicas dos conflitos edipianos, das rivalidades fraternas, das dependências infantis; obtenção de um sentimento de personalidade e valor próprio e um senso de obrigação moral), a criança precisa de compreender o que se passa no seu consciente de forma a que possa enfrentar o que se passa no seu inconsciente. Ela pode conseguir este entendimento e, com ele, a capacidade de apontamento, não através de uma compreensão racional da natureza e do conteúdo do seu inconsciente, mas familiarizando-se com este por meio de devaneios — ruminando, reajustando e fantasiando elementos adequados para responder a tensões inconscientes. Procedendo assim, a criança acomoda o conteúdo inconsciente a fantasias conscientes, que então lhe permitem lidar com esse conteúdo. É aqui que os contos de fadas têm um valor ímpar, porque oferecem à imaginação da criança novas dimensões que seria impossível ela descobrir só por si. Mais: a forma e a estrutura dos contos de fadas sugerem à criança imagens através das quais ela pode estruturar os seus devaneios, e com isso orientar melhor a vida. Na criança ou no adulto, o inconsciente é um poderoso determinante do comportamento. Quando o inconsciente é reprimido e ao seu conteúdo é negada a consciencialização, então o espírito consciente da pessoa acabará finalmente por ficar em parte esmagado pelos derivativos destes elementos inconscientes, ou então, ela será forçada a manter um controle tão rígido e compulsivo sobre os mesmos que a sua personalidade poderá vir a ser gravemente afetada. Mas quando se permite que material inconsciente, em certa medida, atinja a consciência e possa ser elaborado através da imaginação, o seu potencial para fazer o mal — a nós próprios ou a outros — torna-se muito reduzido; algumas das suas forças podem então ser dirigidas para fins positivos. Contudo, a crença paternal dominante é que a criança tem de ser poupada daquilo que mais a perturba: as suas angústias sem forma nem nome, as suas fantasias caóticas, enfurecidas, ou mesmo violentas. Muitos pais acreditam que só a realidade consciente ou imagens agradáveis e que satisfaçam os nossos desejos devem ser oferecidos à criança — que ela deve ser exposta somente ao lado belo das coisas. Porém, um tal alimento unilateral nutre o espírito também só unilateralmente, e a vida real não é toda bela. Há uma recusa muito generalizada em deixar as crianças saberem que a fonte de muito do que vai mal no mundo é devido às nossas próprias naturezas — a propensão que todo o homem tem para agir agressivamente, associalmente, egoistamente, por raiva ou angústia. Em vez disso, queremos que os nossos filhos acreditem que todos os homens são bons por natureza. Mas os miúdos sabem que eles não são sempre bons; e muitas vezes, mesmo quando o são, prefeririam não o ser. Isto vem contradizer o que os pais lhes dizem, o que faz com que a criança se veja a si própria como um monstro. A cultura dominante deseja aparentar, especialmente no que diz respeito às crianças, que o lado sombrio do homem não existe, declarando acreditar num «melhorismo» otimista. A própria psicanálise é encarada como tendo por fim tornar a vida fácil — mas isso não era a intenção do seu fundador. A psicanálise foi criada para habilitar o homem a aceitar a natureza problemática da vida sem ser vencido por ela ou sem se entregar à fuga sistemática. A «receita» de Freud é que só através da luta corajosa contra o que parecem ser esmagadoras contrariedades é que o homem pode chegar a encontrar um sentido para a sua existência. É esta exatamente a mensagem que os contos de fadas trazem à criança, por múltiplas formas: que a luta contra graves dificuldades na vida é inevitável, faz parte intrínseca da existência humana — mas que se o homem se não furtar a ela, e com coragem e determinação enfrentar dificuldades, muitas vezes inesperadas e injustas, acabará por dominar todos os obstáculos e sair vitorioso. Os contos modernos para crianças evitam sobretudo os problemas existenciais, ainda que estes sejam questões cruciais para todos nós. A criança precisa muito especialmente de sugestões, em forma simbólica, sobre como lidar com estes obstáculos para chegar sem risco à maturidade. As histórias «inócuas» não mencionam a morte ou a velhice, nem os limites da nossa existência ou o desejo de uma vida eterna. O conto de fadas, pelo contrário, confronta a criança sem rodeios com as exigências básicas do homem. Por exemplo, muitos contos de fadas começam com a morte da mãe ou do pai; nestes contos, a morte cria problemas angustiantes, como a própria morte, ou o medo dela, o faz na vida real. Outros contos falam de um pai idoso que decide que chegou a altura de a nova geração tomar as rédeas. Contudo, antes que isso aconteça, o sucessor tem de provar ser capaz e digno. O conto dos irmãos Grimm "As Três Penas" começa assim: «Era uma vez um rei que tinha três filhos... Quando o rei já estava velho e fraco, pensando no seu fim, não sabia qual dos filhos deveria herdar o seu trono.» Para se decidir, o rei dá aos filhos uma tarefa difícil; o filho que melhor a desempenhar «será rei depois da minha morte». É característico dos contos de fadas expor um dilema existencial, concisa e diretamente. Isto permite que a criança enfrente logo o problema na sua forma mais essencial, ao passo que um enredo mais complexo seria para ela mais confuso. O conto de fadas simplifica todas as situações. As suas personagens são definidas com clareza; e os pormenores, a não ser que sejam muito importantes, são eliminados. Todos os carateres são mais típicos que invulgares. Contrariamente ao que acontece nos modernos contos para crianças, tanto a maldade como a virtude se encontram omnipresentes nos contos de fadas. Em praticamente todos os contos de fadas o bem e o mal aparecem sob a forma de algumas personagens e suas ações, tal como o bem e o mal estão omnipresentes na vida e as propensões para ambos se encontram em cada homem. É esta dualidade que põe um problema moral e exige um luta para a resolver. O mal não deixa de ter os seus atrativos — simbolizados pelo poderoso gigante ou pelo dragão, pelo poder da bruxa, da astuta rainha em Branca de Neve — e muitas vezes está temporariamente em ascendência. Em muitos contos de fadas o usurpador consegue, por algum tempo apoderar-se do lugar que, por direito, pertence ao herói — como as maldosas irmãs n' A Gata Borralheira. Não é o facto de o malfeitor ser castigado no fim da história que faz com que os contos de fadas sejam uma experiência de educação moral, ainda que isso também seja uma parte da questão. Nos contos de fadas, como na vida, o castigo (ou o medo dele) é somente uma dissuasão limitada para o crime. A convicção de que o crime não compensa é uma dissuasão muito mais eficaz, e é por isso que nos contos de fadas os maus perdem sempre. Não é o facto de a virtude ganhar no fim que promove a moralidade, mas sim o facto de que o herói é extremamente simpático para a criança, a qual se identifica com ele em todas as suas lutas. Por causa desta identificação, a criança imagina que sofre com o herói todas as suas provações e tribulações, triunfando com ele quando a virtude triunfa também. A criança faz tais identificações por si própria, e as lutas interiores e exteriores do herói gravam nela a moralidade. As personagens dos contos de fadas não são ambivalentes — não são boas e más ao mesmo tempo, como na realidade o somos. Mas uma vez que a polarização domina o espírito da criança, ela domina também os contos de fadas. Uma pessoa é boa ou má, sem meios-termos. Um irmão é estúpido, outro inteligente. Uma irmã é virtuosa e trabalhadora, a outra vil e preguiçosa. Uma é bela, as outras feias. Um dos pais é todo bondade, o outro maldade. A justaposição de personagens opostas não tem por fim pôr ênfase ao «bom» comportamento, como seria o caso nos contos de advertência. (Há alguns contos de fadas amorais em que o bem e o mal, a beleza e a fealdade não têm qualquer papel.) Estas personagens polarizadas permitem à criança compreender facilmente a diferença entre ambos os pólos, coisa que ela não poderia fazer facilmente se os protagonistas fossem desenhados mais próximos da realidade, com todas as complexidades que caracterizam as pessoas reais. As ambiguidades têm de esperar até que se tenha estabelecido uma personalidade relativamente firme com base em identificações positivas. Só então é que a criança tem bases para compreender que há grandes diferenças entre as pessoas e que, portanto, tem de fazer uma opção sobre aquilo que quer ser. Esta decisão básica, sobre a qual todo o desenvolvimento posterior da personalidade será erigido, é facilitada pela polarização do conto de fadas. Mais: as preferências da criança baseiam-se não tanto na oposição entre o bem e o mal como em quem desperta a sua simpatia ou a sua antipatia. Quanto mais simples e boa for uma personagem, mais fácil será para a criança identificar-se como o herói bom não por causa da sua bondade, mas porque a situação do herói encontra nela um eco profundo e positivo. Para a criança, a questão não é «Quero ser bom?», mas sim, «Com quem me quero parecer?» A criança decide isso com base na sua completa projeção numa personagem. Se esta é uma boa pessoa, então a criança decide que ela também quer ser boa. Os contos de fadas amorais não mostram polarização ou justaposição de pessoas boas e más porque têm uma finalidade inteiramente diferente. Contos ou personagens como O Gato das Botas, em que o herói é bem sucedido através das batotas que faz, e Jack, que rouba o tesouro do gigante, não propõem opções entre o bem e o mal. Mas proporcionam à criança a esperança de que mesmo os fracos podem triunfar. Afinal, para que é que serve ser uma boa pessoa quando um tipo se sente tão insignificante que acha que nunca chegará a ser alguém? A moralidade não é o objetivo destes contos, mas sim o sentimento de que é possível ser bem sucedido na vida. Respondem assim a um importantíssimo problema existencial: a questão de se encarar a vida com confiança, na possibilidade de enfrentar e resolver as dificuldades ou, pelo contrário, com o sentimento antecipado da derrota. Os profundos conflitos interiores, que têm origem nas nossas pulsões primitivas e nas nossas emoções violentas, são denegados na maioria da moderna literatura infantil, e desta forma a criança não encontra aí apoio na sua elaboração desses sentimentos. Mas a criança é sujeita a sentimentos desesperados de solidão e abandono, e frequentemente sente uma angústia mortal. As mais das vezes, não sabe exprimir tais sentimentos por palavras, ou só o pode fazer por forma indireta: tem medo da escuridão ou de algum animal, sente angústia pelo seu corpo. Uma vez que reconhecer estas emoções nos filhos cria mal-estar nos pais, eles tendem a ignorar ou a minimizar esse receios, com base na sua própria angústia, pensando que isso acalmará o medo manifestado pelas crianças. O conto de fadas, pelo contrário, leva muito a sério estas angústias e dilemas existenciais e aborda-os diretamente: a necessidade de nos sentirmos amados e o medo de que pensem que não prestamos para nada; o amor pela vida e o medo da morte. Além disso, o conto de fadas oferece soluções que a criança pode apreender no seu nível de compreensão. Por exemplo, os contos de fadas põem o problema do desejo da vida eterna, concluindo ocasionalmente: «Se eles não morreram, ainda estão vivos.» Outros acabam assim: «E viveram felizes para todo o sempre.» Contudo, não levam a criança a acreditar, nem por um instante, que a vida eterna é possível. Mas indicam a única coisa que pode suavizar os estreitos limites da nossa passagem por este mundo: a formação de uma ligação verdadeiramente satisfatória com outrem. Os contos de fadas ensinam que através das ligações afetivas com outra pessoa atingimos a suprema segurança emocional e conseguimos as relações mais permanentes que estão ao nosso alcance; e só isto pode dissipar o medo da morte. Se encontramos o verdadeiro amor adulto, diz-nos também o conto de fadas, então não precisamos de desejar a vida eterna. Isto é sugerido por outro final: «Eles viveram por muito tempo, felizes e contentes.» As pessoas mal informadas sobre o conto de fadas veem neste tipo de final a satisfação de um desejo infantil irrealista e escapa-lhes completamente a importante mensagem que é dirigida à criança. Estes contos dizem-lhe que, através da formação de uma verdadeira relação interpessoal, pode escapar à angústia da separação que a persegue (angústia essa que constitui o cenário de muitos contos de fadas e acaba por ser sempre bem resolvida no fim da história). Mais: a história diz-nos que este final não se torna possível (tal como a criança deseja e acredita) se uma pessoa se agarrar à mãe eternamente. Se tentarmos escapar à angústia da separação e da morte agarrando-nos desesperadamente aos nossos pais, acabaremos por ser cruelmente postos na rua, como Hansel e Gretel. Só saindo para a vida é que o herói (a criança) pode encontrar-se; e deste modo encontrará também «outrem» com quem poderá viver feliz para sempre (isto é, sem ter de sentir outra vez a angústia da separação). O conto de fadas é orientado para o futuro e guia a criança (em termos que ela possa entender tanto do ponto de vista do seu psiquismo consciente como do seu inconsciente) no sentido de renunciar aos seus desejos de dependência infantil e realizar uma existência independente mais satisfatória. As crianças de hoje já não crescem na segurança de uma grande família ou de uma comunidade bem integrada. Assim, mais ainda do que no tempo em que foram inventados os contos de fadas, é importante fornecer à criança moderna imagens de heróis que têm de se lançar no mundo sozinhos e que, apesar de não saberem à partida como é que as coisas se vão resolver, acham lugares seguros no mundo, seguindo para a frente com profunda confiança interior. O herói dos contos de fadas tem um percurso solitário durante uns tempos, tal como a criança moderna frequentemente se sente isolada. O herói recebe ajuda porque está em contacto com coisas primitivas — uma árvore, um animal, a natureza —, tal como a criança se sente em contacto com estas coisas, mais do que a maioria dos adultos. O destino destes heróis convence a criança de que, como eles, se pode sentir abandonada no mundo, tateando no escuro; mas, como eles, no decorrer da sua vida será guiada passo a passo, e receberá ajuda quando necessário. Hoje, mais do que noutros tempos, a criança precisa da confiança oferecida pela imagem do homem isolado, que todavia é capaz de estabelecer relações significativas e compensadoras com o mundo que o rodeia.
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