A discussão à volta do conceito de Literatura destinada a crianças e jovens está desde há muito instalada entre os estudiosos na matéria, ditada pelos contornos ambíguos dos seus limites característicos. As teses são muitas. Por Palmira Simões Bigstock Photo Entre elas a negação da sua existência, devendo por isso ser integrada na Literatura geral porque esta é só uma e deve estar aberta a todo o tipo de leitores; a legitimação enquanto objeto literário de qualidade, sendo entendida muitas vezes como parente “pobre” ou subproduto; ou o englobamento dos diferentes públicos a que se destina (normalmente dos 0 aos 14/15 anos de idade), com competências leitoras díspares, num único atributo – infanto-juvenil – como se se pudessem fundir num só. O conhecimento dos estádios do desenvolvimento humano, conduzidos à ribalta por autores como Piaget, veio trazer alguma luz sobre o assunto, ou seja, sobre a forma de organização mental que permite ao indivíduo relacionar-se com a realidade que o rodeia (Coll e Gillièron, citados por Márcia Terra) e que obviamente difere consoante a idade na primeira fase da vida, passando por períodos a começar no sensório-motor (0-2 anos) e a terminar no das operações formais, a partir dos 11-12 anos. Outros autores vão mais longe, como Appleyard (citado por Bastos), que preconiza que a abordagem à leitura e o estabelecimento de laços com o livro fazem-se não só através de estruturas cognitivas mas também de envolvimentos afetivos, relações interpessoais, papéis sociais, etc. que não estão tão delimitados pelo fator idade. Capacidades cognitivas à parte, há pois quem defenda que crianças e jovens distinguem-se também do ponto de vista sociológico, nomeadamente no que respeita à “cultura” dos segundos, geralmente associada a uma identidade social, padrões de comportamento quotidiano e modos de pensar e de agir muito próprios, aos quais José Machado Pais chama de “paradoxos da juventude”. Talvez na tentativa de dar resposta a estes dois “mundos” – infantil e juvenil – aparentemente tão distintos, o mercado editorial tenha vindo também ele a bifurcar-se e a possibilitar o surgimento de criações literárias sob a denominação de Literatura Juvenil (LJ). Mas a designação, tal como o conceito, é polémica. Petrini (citado por Padrino) afirma que a LJ alcançou a “maioridade” e encontrou o seu espaço vital que junta às obras literárias modernas técnicas audiovisuais e abraça temáticas vastas como a divulgação científica, vivas e atuais, a ponto de lhe atribuir um valor educativo. Garcia Padrino desvaloriza esta característica atribuída apenas a este tipo de Literatura e reivindica-a para a Literatura geral, apontando como suposto ponto diferenciador a presumida “especificidade” de se adaptar aos gostos do público juvenil e não as criações literárias em si. No fundo, o que ele diz é que a LJ é Literatura, indiscutivelmente, e se, por acaso, ela transgredir alguns dos limites autênticos da causa literária continuaremos a falar de Literatura embora não na sua forma plena. E refere dois fatores que estão na base da atual demarcação da LJ: a vontade dos professores em desenvolver ou manter hábitos de leitura nos jovens através de obras adaptadas aos seus conhecimentos e interesses e a visão comercial do mercado editorial para este segmento, uma ideia corroborada por Isabelle Jan (citada por Padrino), que a dada altura terá afirmado que a LJ não é mais do que um fenómeno económico. Desvinculando-se em parte destes conceitos, Garcia Padrino, no mesmo texto, afirma que a atenção deve antes recair no fenómeno comunicativo da relação dos jovens com a Literatura em geral, repescando uma definição de Literatura Infantil e Juvenil datada de 1975 do investigador francês Marc Soriano, que a conceptualizava como uma “comunicação histórica (no tempo e no espaço) entre um locutor ou um escritor adulto (emissor) e um destinatário criança (recetor) que, por definição, de algum modo, no decurso do período considerado, não dispõe senão de forma parcial da experiência do real e das estruturas linguísticas, intelectuais, afetivas e outras que caracterizam a idade adulta”. A partir desta perspetiva, na hora de avaliar a LJ dever-se-á, segundo Garcia Padrino, considerar condicionalismos de transmissão e difusão da obra literária como mecanismos para a aquisição do livro ou a formação de hábitos literários prévios, destacando ainda neste processo o papel influenciador da família, da escola e dos professores, bem como da biblioteca escolar. É neste sentido que este autor sugere tirar partido da LJ no processo didático, através das leituras escolares e ao abrigo da Literatura em geral, fazendo uso quer de técnicas expressivas como dramatização ou recitação, quer de técnicas instrumentais a realizar com outro tipo de leituras, como as informativas ou recreativas. José António Gomes defende igualmente esta diversidade quando refere que os livros para a juventude “estão longe de se restringir ao campo da literatura”, acrescentando que qualquer biblioteca “deverá ter em conta esta realidade, dando assim resposta à potencial disparidade de gostos e interesses de leitura que caracterizam o universo multifacetado dos seus utilizadores” (idades e sexos, diferentes experiências linguísticas, cognitivas, sociais e culturais, e em fases diferenciadas do desenvolvimento das competências de leitura). Apesar da controvérsia, especialistas na área defendem a diferenciação e o mercado editorial aposta forte na “multiplicidade” do público juvenil, principalmente a nível temático, com predomínio do género narrativo, pouco denso (maioritariamente de autores estrangeiros, ou seja, traduções), em registo de diálogo e coloquial, passando pelas referências culturais atuais, coleções próprias, entre outras características identitárias da adolescência e juventude de hoje. Conclusão: interessa que os jovens tenham acesso à Literatura, seja ela qual for, e também a outras fontes de informação. Nestas idades revela-se fundamental consolidar os hábitos e as competências leitoras, aprendendo a lidar com leituras mais complexas (há que estabelecer alguns critérios). mas sem perder de vista a importância de ler por prazer, mesmo que isso implique o recurso a textos não literários ou com cariz mais lúdico. Os prazeres, incluindo o da leitura, não se impõem, contagiam-se, como diz Fernando Savater, tal como não se impõe a curiosidade pelos livros; desperta-se, “porque se queremos que o nosso filho, a nossa filha, a juventude leiam, é urgente outorgar-lhes os direitos que outorgamos a nós próprios” (Pennac), entre eles o de ler não importa o quê. Para saber mais (fontes) - BASTOS, Glória (1999), Literatura Infantil e Juvenil, Universidade Aberta, Lisboa. - FRAGA DE AZEVEDO, Fernando (S/D), “A literatura infantil e o problema da sua legitimação”, Universidade do Minho. Disponível em: http://repositorium.sdum.uminho.pt/bitstream/1822/2854/1/Literatura%20Infantil.pdf. - GOMES, José António (2006), ensaio “Literatura para a Infância e a Juventude e Promoção da Leitura”. Texto revisto para a Casa da Leitura em 2007 e originalmente para: “Promoção da Leitura: Balanço e Perspetivas”, Ponte de Lima, 2006, encontro no âmbito do projeto Vale de Letras, da Valimar (Associação de Municípios do Vale do Lima). Disponível em: http://195.23.38.178/casadaleitura/portalbeta/bo/abz_indices/000791_PL.pdf. - LÓPEZ, Xavier Minguez (S/D), “Una definición altamente problemática: la Literatura infantil y juvenil y sus ámbitos de estúdio”, Universidade de Valência, disponível em: http://www.academia.edu/456745/Una_definicion_altamente_problematica_la_Literatura_infantil_y_juvenil_y_sus_ambitos_de_estudio. - PADRINO, J. Garcia (1998) “Vuelve la polémica...¿Existe la literatura juvenil?”, Revista de Literatura Infantil Cuatrogatos, disponível em: http://www.cuatrogatos.org/show.php?item=216. - PAIS, José Machado (2003). Excertos de Culturas juvenis. 2ª ed., Lisboa: INCM (entre as pp. 29 e 41. - PENNAC, Daniel (1993), Como um Romance, Edições ASA (15ª edição de maio de 2010), Alfragide/Amadora. - TERRA, Márcia Regina (S/D), “O desenvolvimento humano na Teoria de Piaget”, texto disponibilizado na plataforma moodle da unidade “A leitura na Adolescência e na Juventude” da Universidade Aberta: http://www.unicamp.br/iel/site/alunos/publicacoes/textos/d00005.htm. - POR OUTRO LADO (2006), entrevista à RTP2 do escritor filósofo espanhol Fernando Savater sobre a Leitura em Escolas, por Ana Sousa Dias: http://www.youtube.com/watch?v=c6Cw8c851Jg&playnext=1&list=PL5079F3FDBE25794A&feature=results_main
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